Por: José Gonçalves do Nascimento
Uma das mais vigorosas referências da história do pensamento brasileiro, Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em 20 de janeiro de 1866, numa fazenda modesta do município de Cantagalo, antiga província do Rio de Janeiro.
Aos três anos de idade, fica órfão de mãe e passa a conviver sob os cuidados de parentes. Em 1874, inicia seus estudos no Instituto Colegial Fidelense, na cidade de São Félix (RJ), vindo, depois, a frequentar diversos estabelecimentos de ensino. Em um destes, é aluno do positivista Benjamim Constant, um dos nomes mais expressivos da propaganda republicana.
No ano de 1883, escreve seus primeiros poemas, aos quais empresta o título de Ondas. Em 1885, matricula-se no curso de engenharia da Escola Politécnica, mas sem recursos para bancar os estudos, transfere-se para a Escola Militar, de onde é expulso pouco tempo depois, por razões de indisciplina. Em 1890, matricula-se na Escola Superior de Guerra, onde conclui o curso de Artilheiro de Estado Maior e Engenharia, bacharelando-se em Matemática e em Ciências Físicas e Naturais. No mesmo ano, contrai matrimônio com Ana Emília, filha do major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro.
Em 1897, é enviado ao sertão da Bahia pelo jornal O estado de São Paulo, com a missão de cobrir a Guerra de Canudos. No dia 02 de dezembro de 1902, lança, através da Editora Laemmert, do Rio de Janeiro, Os sertões (campanha de Canudos), obra em que narra, de forma magistral, o episódio que abalou o Brasil e a República. No ano seguinte, 1903, é eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira nº 7, que tem como patrono o poeta baiano Castro Alves. Em 1904, a convite do Barão do Rio Branco, viaja para a região do Alto Purus, na Amazônia, incumbido de chefiar uma missão demarcadora de fronteiras. Morre em 15 de agosto de 1909, aos 43 anos, em duelo com Dilermando de Assis, amante de sua esposa.
Intelectual de escol, Euclides da Cunha foi responsável pela descoberta de um Brasil que até então era desconhecido: o Brasil do interior. Para ele, a construção da identidade nacional brasileira teria que buscar seus fundamentos na profundidade do Brasil interiorano, pois era lá que estava “o cerne da nacionalidade”.
Dedicado aos estudos das questões brasileiras, conforme pontifica um dos seus melhores biógrafos – Olímpio de Souza Andrade – Euclides valeu-se “da ciência para examinar sob vários aspectos a conformação do território brasileiro, seus ares, suas águas, sua flora, sua fauna, bem como a evolução do povo brasileiro, ressaltando conflitos entre estágios diversos de civilização. Mas principalmente valeu-se disso tudo, com engenho e arte, assim vendo o que os outros não viam, e dizendo-o numa linguagem clara e precisa, de rara beleza”.
É esta a tônica de toda produção literária de Euclides da Cunha, sendo que Os sertões é a obra que melhor encarna a preocupação do autor. Dividido em três partes (a Terra, o Homem e a Luta), o livro empreende ampla e profunda abordagem acerca da geografia do Nordeste e dos tipos humanos que a povoam, culminando com o conflito entre as forças legais e a gente de Antônio Conselheiro.
A obra em questão ostenta o mérito de haver mediado o difícil e doloroso diálogo entre o “Brasil real e o Brasil oficial” – no dizer sapiente de Machado de Assis – despertando a atenção das elites políticas, econômicas e culturais para os infindáveis problemas que faziam (e fazem) desta uma nação dividida entre o progresso do litoral e o atraso do interior.
Além d’Os sertões, há, na extensa obra de Euclides da Cunha, mais dois livros sobre a temática de Canudos: Caderneta de campo e Canudos: diário de uma expedição. O primeiro, publicado postumamente em 1975, pela editora Cultrix (São Paulo), traz uma série de anotações e croquis da época em que o escritor se achava no campo de batalha. O segundo, também publicado após a morte do autor, em 1939, pela editora José Olímpio (Rio de Janeiro), reúne o conjunto de correspondências encaminhadas ao jornal O estado de São Paulo, informativo para o qual trabalhou o escritor, na condição de enviado especial ao teatro da guerra. O acervo de informações reunido na Caderneta e no Diário seria de grande utilidade para autor, quando da feitura d’Os sertões.
Fora do chamado “ciclo d’Os sertões” (que compreende toda a literatura referente à guerra de Canudos), é Euclides da Cunha autor de outros três títulos notáveis: Perus versus Bolívia (1906), Contrastes e confrontos (1907) e À margem da história (1909), este último publicado depois da morte do escritor. As três obras reúnem artigos, ensaios e estudos produzidos por Euclides ao longo de sua atividade intelectual. Sua extensa produção literária inclui ainda correspondências, poesias, e um sem-número de crônicas e artigos publicados em jornais e revistas da época.
Dois episódios da vida de Euclides da Cunha são particularmente emblemáticos, na medida em que atestam o nível de austeridade, compromisso e determinação com que costumava agir o escritor fluminense:
O primeiro se deu em novembro de 1888. Era Euclides cadete do Exército Brasileiro, quando, demonstrando fidelidade aos ideais republicanos, insubordinou-se contra o ministro da Guerra do Império, Tomás Coelho, que se achava em visita à Escola Militar. Diante do superior hierárquico, o jovem estudante atirou ao chão o próprio sabre, depois de tentar, sem sucesso, despedaçá-lo sobre a própria perna. Foi preso e depois expulso. Um ano mais tarde, em 1889, proclamada a República, voltou ele ao Exército, já no posto de tenente. Em 1896, divergiu de Floriano Peixoto, quanto ao tratamento dado aos prisioneiros da Revolta da Armada (1893-1894), vindo a desligar-se definitivamente das fileiras do Exército.
O segundo episódio é de 1892. Ao assumir a presidência da República, após o golpe militar que derrubou o marechal Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto chamou a palácio o novel engenheiro Euclides da Cunha e a ele concedeu o direito de escolher no Governo o posto para o qual se achasse mais qualificado. Era a época da derrubada dos governadores fiéis a Deodoro e da nomeação dos interventores estaduais. Euclides poderia ser um destes. Todavia, para a surpresa do “marechal de ferro”, o futuro autor d’Os sertões disse desejar apenas o que previa a lei para os engenheiros recém-formados, ou seja, um ano de prática na Estrada de Ferro Central do Brasil. “Quando me despedi [contará ele mais tarde em carta a Lúcio de Mendonça] parecia-me que no olhar mortiço do interlocutor estava escrito: Nada Vales”.
Como homem de ciência, sintonizado com o que havia de mais avançado no âmbito da intelectualidade, e imbuído dos ideais do positivismo – corrente filosófica que defendia o primado da razão como único meio de construção da civilização e, por conseguinte, da ordem e do progresso dos povos – além de intransigente defensor da causa brasileira, Euclides da Cunha foi firme e enérgico na defesa das suas convicções mais profundas. Terminou decepcionado com a República, ao perceber que esta não conseguira atender à expectativa do povo brasileiro. E, uma vez decepcionado, tornou-se crítico ferrenho da forma de governo inaugurada por Deodoro da Fonseca.
Para Gilberto Freire “ele [Euclides da Cunha] foi a voz que clamou a favor do deserto brasileiro: Endireitai os caminhos do Brasil (O Brasil era o seu “sonho”) os caminhos entre as cidades e os sertões. Esta foi a grande mensagem de Euclides: que era preciso unir-se o sertão com o litoral para a salvação – e não apenas conveniência – do Brasil. Ninguém mais do que ele enalteceu tanto o sertão e o sertanejo. Em Euclides [prossegue o autor de Casa Grande e Senzala] a tendência foi quase sempre para engrandecer e glorificar as figuras, as paisagens, os homens, as mulheres, as instituições com que se identifica o vaqueiro, o sertanejo, o próprio jagunço. Até mesmo o negro dos sertões – sobrevivência do quilombola colonial – sai engrandecido de suas páginas”.
Euclides da Cunha, poderíamos dizer, é o nosso Homero dos trópicos, além de imortalizador da tróia de taipa de Beatinho, Pajeú e Antônio Conselheiro.
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