Por José Gonçalves
Escrevendo
sobre a guerra de Canudos, ainda no calor da hora, o escritor Afonso
Arinos de Mello Franco afirmava ter tido aquele episódio o mérito de
denunciar, perante as instâncias do poder, “o desprezo ou o olvido a que
fora relegada” a região sertaneja. Tinha razão, o autor de "Os
jagunços". Todavia, Canudos foi mais além: ele pôs em evidência a
própria causa da miséria e do atraso.
Ao lado de tantos outros movimentos camponeses que fizeram história no
Brasil, Canudos nada mais foi do que consequência de um problema cujas
origens remontam aos tempos da colonização: o monopólio da terra –
legado que chega aos nossos dias, projetando o Brasil no ranking mundial
dos países com maior concentração fundiária.
É óbvio que o
Brasil de hoje é diferente do Brasil de outros tempos. Todavia, no que
toca ao sistema fundiário, pouca coisa avançou. O latifúndio resistiu a
todas as grandes transformações porque passou o país durante cinco
séculos, e de todas elas saiu incólume. Neste tópico, o Brasil é um país
extremamente atrasado, conservador e injusto.
Como é possível
pensar em justiça social e ao mesmo tempo conviver com um sistema
fundiário que exclui os cidadãos e cidadãs, condenando-os à miséria,
quando não à própria morte?! É inconcebível que 12 milhões de camponeses
(em 1997), não tenham de onde tirar o pão de cada dia, enquanto 166
milhões de hectares de terra fértil (o que corresponde três vezes à
França), “repousam em paz” sob a custódia do arame farpado.
No
momento em que se rememora o centenário do massacre do Belo Monte
(1997), a situação do campo não é muito diferente daquela em que se deu o
movimento liderado por Antônio Conselheiro: monopólio, exploração,
exclusão, conflito, etc. Fundamentalmente, Canudos foi uma reação do
sertanejo (poderia ter sido do sulista), a tal estado de coisas. Ou
seja, foi um movimento em função da terra; movimento este, por sinal,
exitoso.
Em que pese o curto espaço de tempo (apenas quatro
anos) e a localização em uma das regiões mais áridas do sertão baiano,
Canudos não demorou a conquistar sua autonomia econômica. O jornalista
Manoel Benício, que ali esteve durante a guerra, disse haver na referida
povoação “plantações de diversos legumes, milho, feijão, favas,
batatas, melancias, melões, jeremuns, cana-de-açúcar (...). Havia,
ainda, “sítios, pomares, fazendolas de criação de bode, animais vacuns e
cavalares...” Outro testemunho digno de crédito vem do Dr. Nina
Rodrigues, o mesmo que examinou o crânio do peregrino cearense: “em
curto prazo, Antônio Conselheiro transformou Canudos de estância deserta
de abandonada em uma vila florescente e rica”.
Canudos
passava a representar uma forte ameaça ao status quo do latifúndio
brasileiro. E essa ameaça tinha que ser debelada. E o foi. Em 1896, com o
apoio dos fazendeiros e da cúpula da igreja católica, o governo da
república declarou guerra à comunidade canudense, resultando na chacina
que vitimou milhares de camponeses.
Cem anos depois, eis de
novo as ocupações; os pequenos “canudos” aqui e acolá; os camponeses
novamente em luta pela terra. Por sua parte, os senhores da terra, agora
vestindo a camisa multicor do neoliberalismo, continuam a reagir com
não menos ferocidade. O método é sempre o mesmo. Que o diga a memória
dos mortos de Corumbiara, Eldorado dos Carajás, e tantos outros
“eldorados” da morte disseminados por este país “abençoado por Deus”.
A luta pela terra continua; e, enquanto não desmoronar o último latifúndio, ela não cessará. É o sistema que assim o quer.
Por José Gonçalves do Nascimento
jgoncalvesnascimento@hotmail.com
*Artigo publicado, originalmente, no jornal A Tarde, de Salvador,
edição do dia 3 de abril de 1997 e no jornal GAC de Monte Santo, edição
de agosto de 1997