Em 13 de junho de 1893, poucos anos
após a proclamação da república, o peregrino cearense Antônio Vicente Mendes
Maciel, ou Antônio Conselheiro, acompanhado de centenas de fiéis seguidores, chega a uma pequena povoação, situada às
margens férteis do rio Vazabarris, na época município de Monte Santo, no
semiárido baiano, e ali estabelece o arraial místico de Canudos, também
conhecido como Belo Monte.
A escolha do local não se dera por acaso. Fora feita de forma criteriosa, levando-se em consideração a viabilidade da comunidade, a que se propunha o peregrino cearense. A área escolhida oferecia, ao mesmo tempo, condições de defesa contra os inimigos, acesso fácil a outras comunidades e facilidade de comunicação.
Do ponto de vista da estratégia defensiva, o local reunia as melhores condições de defesa e de ataque. A geografia do lugar, caracterizada pela presença de serras e colinas – estas, por sua vez, separadas por vales e desfiladeiros – transformava o arraial numa ampla e majestosa fortaleza. Diferente de outras vilas do sertão, Canudos detinha todas as comodidades no que diz respeito ao abastecimento de água, já que servido pelo caudaloso Vazabarris, que, das encostas das montanhas e penhascos, corria sinuoso pelo arraial, onde abastecia o conjunto da população.
As terras eram úmidas e férteis, graças às águas do grande rio, o que proporcionava uma boa e farta agricultura. A vegetação, à base de arbustos e favelas, favorecia a criação de bode. A pele deste animal chegou a ser exportada até mesmo para o exterior.
Angelina Nobre Rolim Garcez, em importante monografia intitulada “Aspectos econômicos do episódio de Canudos”, publicada nos anos setenta do século passado, afirma que “Canudos não pode ter se mantido todo tempo, opondo a resistência que opôs, por força apenas dos acasos da sorte. Um apoio econômico mais regular e mais sólido deve ter existido, ou melhor dizendo, não pode deixar de ter existido.”
Relatos da época dão conta do padrão de prosperidade econômica a que chegou a comunidade belomontense. Dr. Nina Rodrigues, o mesmo que examinou o crânio de Antônio Conselheiro, afirmava, em 1897, em pleno desenrolar do conflito, ter o beato, em curto espaço de tempo, transformado Canudos “de estância deserta e abandonada em uma vila florescente e rica.”
O jornalista Manoel Benício, responsável por um dos mais importantes relatos sobre o dia-a-dia de Canudos, uma vez que ali esteve na condição de enviado especial do Jornal do comércio, do Rio de Janeiro, notou e anotou que “às margens frescas do rio [Vazabarris] eram cultivadas plantações de diversos legumes, milho, feijão, favas, batatas, melancias, jerimuns, melões, canas etc. Nos terrenos arenosos, viam-se milhares de matombos, grelando o talo tenro das mandiocas e outros com estacas de diversos tamanhos. Pelas vizinhanças, os pequenos cultores da terra possuíam sítios, pomares, fazendolas de criação de bode, animais vacuns e cavalares.”
Manuel Ciríaco, homem influente no arraial conselheirista, contou a Odorico Tavares em 1947: “no tempo de Antônio não gosto nem de falar para não passar por mentiroso, havia de tudo, por esses arredores. Dava de tudo e até cana de açúcar de se descascar com a unha, nascia bonitona por estes lados. Legumes em abundância e chuvas a vontade, esse tempo parece mentira.”
Não demorou muito e a reação contra a tentativa de se estabelecer uma sociedade livre das amarras do poder estatal e voltada para a prática da justiça e da solidariedade logo se fez sentir entre setores da elite brasileira. Assim, com o apoio dos latifundiários e da cúpula da igreja católica, o governo republicano, sem estabelecer qualquer tentativa de diálogo com a gente de Canudos e em total desrespeito ao sagrado direito de defesa, declara guerra à aldeia mística dos sertanejos.
Sob alegação de que os canudenses estariam planejando um saque à feira de Juazeiro (BA), o juiz daquela comarca, Arlindo Leoni, requisita do governador, Luiz Viana, proteção policial, a fim de conter a suposta invasão. O magistrado é atendido, e para Juazeiro é enviada a primeira expedição militar. Composta de 100 praças e comandada pelo tenente Pires Ferreira, dita expedição é derrotada pelos canudenses no combate de Uauá.
Imediatamente, é organizada a segunda expedição que, sob o comando do major Febrônio de Brito, tinha 543 praças, 14 oficiais e três médicos. Essa expedição também não resistiu. Foi batida pelos sertanejos, que se valiam de armas rústicas, como espingardas, facões, machados, etc.
Para comandar a terceira expedição contra Canudos, foi escolhida “a maior estrela do florianismo” – na expressão de José Antônio Sola – o coronel Antônio Moreira César, já famoso por ter liquidado a Campanha Federalista de Santa Catarina. Essa expedição reunia 1.300 homens. Também foi derrotada pelos seguidores de Antônio Conselheiro. Moreira César morreu no início dos combates.
A quarta expedição, destinada a fechar o cerco contra Canudos, foi dividida em duas colunas. Uma coluna partiu de Sergipe, a outra de Monte Santo. A primeira, comandada pelo general Savaget; a segunda sob o comando do general Silva Barbosa. Tal expedição contava com batalhões de 11 estados da Federação.
Depois de reiterada resistência, tanto da parte do Exercito, como do lado dos sertanejos, Canudos, finalmente, é derrotado. Foi quase um ano de resistência. Tombou por completo no dia 5 de outubro de 1897. Antônio Conselheiro morrera no dia 22 de setembro. No dia 06 de outubro seu corpo foi exumado, decapitado e seu crânio levado a Salvador, a fim de ser examinado cientificamente.
Euclides da Cunha, jornalista que acompanhou o desenrolar da quarta expedição, escreveu no final d'Os Sertões’, o seu livro vingador: “Canudos não se rendeu, exemplo único em toda história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
O total aniquilamento da comunidade mística de Canudos, por parte do governo republicano, não significou, necessariamente, o fim do ideal propugnado por Antônio Conselheiro, qual seja o de estabelecer um novo modelo social no país, suplantando, de uma vez por todas, as velhas estruturas de poder, historicamente responsáveis pelo estado de abandono a que fora relegado o povo brasileiro, em especial o povo nordestino.
Pautado nos princípios da justiça e da solidariedade e comprometido com a superação do jugo sócio, político e econômico, que, de há muito, oprime as camadas menos protegidas da população, tal projeto de sociedade faz-se cada dia mais atual, granjeando, a todo instante, o apoio de parcelas consideráveis do povo brasileiro, atualmente organizado nos mais diversos segmentos de luta e contestação existentes no país.
José Gonçalves do Nascimento
jgoncalvesnascimento@hotmail.com
A escolha do local não se dera por acaso. Fora feita de forma criteriosa, levando-se em consideração a viabilidade da comunidade, a que se propunha o peregrino cearense. A área escolhida oferecia, ao mesmo tempo, condições de defesa contra os inimigos, acesso fácil a outras comunidades e facilidade de comunicação.
Do ponto de vista da estratégia defensiva, o local reunia as melhores condições de defesa e de ataque. A geografia do lugar, caracterizada pela presença de serras e colinas – estas, por sua vez, separadas por vales e desfiladeiros – transformava o arraial numa ampla e majestosa fortaleza. Diferente de outras vilas do sertão, Canudos detinha todas as comodidades no que diz respeito ao abastecimento de água, já que servido pelo caudaloso Vazabarris, que, das encostas das montanhas e penhascos, corria sinuoso pelo arraial, onde abastecia o conjunto da população.
As terras eram úmidas e férteis, graças às águas do grande rio, o que proporcionava uma boa e farta agricultura. A vegetação, à base de arbustos e favelas, favorecia a criação de bode. A pele deste animal chegou a ser exportada até mesmo para o exterior.
Angelina Nobre Rolim Garcez, em importante monografia intitulada “Aspectos econômicos do episódio de Canudos”, publicada nos anos setenta do século passado, afirma que “Canudos não pode ter se mantido todo tempo, opondo a resistência que opôs, por força apenas dos acasos da sorte. Um apoio econômico mais regular e mais sólido deve ter existido, ou melhor dizendo, não pode deixar de ter existido.”
Relatos da época dão conta do padrão de prosperidade econômica a que chegou a comunidade belomontense. Dr. Nina Rodrigues, o mesmo que examinou o crânio de Antônio Conselheiro, afirmava, em 1897, em pleno desenrolar do conflito, ter o beato, em curto espaço de tempo, transformado Canudos “de estância deserta e abandonada em uma vila florescente e rica.”
O jornalista Manoel Benício, responsável por um dos mais importantes relatos sobre o dia-a-dia de Canudos, uma vez que ali esteve na condição de enviado especial do Jornal do comércio, do Rio de Janeiro, notou e anotou que “às margens frescas do rio [Vazabarris] eram cultivadas plantações de diversos legumes, milho, feijão, favas, batatas, melancias, jerimuns, melões, canas etc. Nos terrenos arenosos, viam-se milhares de matombos, grelando o talo tenro das mandiocas e outros com estacas de diversos tamanhos. Pelas vizinhanças, os pequenos cultores da terra possuíam sítios, pomares, fazendolas de criação de bode, animais vacuns e cavalares.”
Manuel Ciríaco, homem influente no arraial conselheirista, contou a Odorico Tavares em 1947: “no tempo de Antônio não gosto nem de falar para não passar por mentiroso, havia de tudo, por esses arredores. Dava de tudo e até cana de açúcar de se descascar com a unha, nascia bonitona por estes lados. Legumes em abundância e chuvas a vontade, esse tempo parece mentira.”
Não demorou muito e a reação contra a tentativa de se estabelecer uma sociedade livre das amarras do poder estatal e voltada para a prática da justiça e da solidariedade logo se fez sentir entre setores da elite brasileira. Assim, com o apoio dos latifundiários e da cúpula da igreja católica, o governo republicano, sem estabelecer qualquer tentativa de diálogo com a gente de Canudos e em total desrespeito ao sagrado direito de defesa, declara guerra à aldeia mística dos sertanejos.
Sob alegação de que os canudenses estariam planejando um saque à feira de Juazeiro (BA), o juiz daquela comarca, Arlindo Leoni, requisita do governador, Luiz Viana, proteção policial, a fim de conter a suposta invasão. O magistrado é atendido, e para Juazeiro é enviada a primeira expedição militar. Composta de 100 praças e comandada pelo tenente Pires Ferreira, dita expedição é derrotada pelos canudenses no combate de Uauá.
Imediatamente, é organizada a segunda expedição que, sob o comando do major Febrônio de Brito, tinha 543 praças, 14 oficiais e três médicos. Essa expedição também não resistiu. Foi batida pelos sertanejos, que se valiam de armas rústicas, como espingardas, facões, machados, etc.
Para comandar a terceira expedição contra Canudos, foi escolhida “a maior estrela do florianismo” – na expressão de José Antônio Sola – o coronel Antônio Moreira César, já famoso por ter liquidado a Campanha Federalista de Santa Catarina. Essa expedição reunia 1.300 homens. Também foi derrotada pelos seguidores de Antônio Conselheiro. Moreira César morreu no início dos combates.
A quarta expedição, destinada a fechar o cerco contra Canudos, foi dividida em duas colunas. Uma coluna partiu de Sergipe, a outra de Monte Santo. A primeira, comandada pelo general Savaget; a segunda sob o comando do general Silva Barbosa. Tal expedição contava com batalhões de 11 estados da Federação.
Depois de reiterada resistência, tanto da parte do Exercito, como do lado dos sertanejos, Canudos, finalmente, é derrotado. Foi quase um ano de resistência. Tombou por completo no dia 5 de outubro de 1897. Antônio Conselheiro morrera no dia 22 de setembro. No dia 06 de outubro seu corpo foi exumado, decapitado e seu crânio levado a Salvador, a fim de ser examinado cientificamente.
Euclides da Cunha, jornalista que acompanhou o desenrolar da quarta expedição, escreveu no final d'Os Sertões’, o seu livro vingador: “Canudos não se rendeu, exemplo único em toda história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
O total aniquilamento da comunidade mística de Canudos, por parte do governo republicano, não significou, necessariamente, o fim do ideal propugnado por Antônio Conselheiro, qual seja o de estabelecer um novo modelo social no país, suplantando, de uma vez por todas, as velhas estruturas de poder, historicamente responsáveis pelo estado de abandono a que fora relegado o povo brasileiro, em especial o povo nordestino.
Pautado nos princípios da justiça e da solidariedade e comprometido com a superação do jugo sócio, político e econômico, que, de há muito, oprime as camadas menos protegidas da população, tal projeto de sociedade faz-se cada dia mais atual, granjeando, a todo instante, o apoio de parcelas consideráveis do povo brasileiro, atualmente organizado nos mais diversos segmentos de luta e contestação existentes no país.
José Gonçalves do Nascimento
jgoncalvesnascimento@hotmail.com
4 comentários:
Muito bom o texto, a história de Canudos não pode morrer..
Parabéns!!!
A história contada por quem se declara vencedor geralmente apresenta uma única versão dos fatos que é aquela que lhes interessam. Tive tios avós que sobreviveram a este conflito, e tinham marcas em seus próprios corpos.
E como o tempo corrige as distorções causadas pela arrogacia, poder e dinheiro, quem triunfa, a posteriori, nesta história e Antonio Mendes Maciel. E para um homem enquanto ser dotado de capacidade de sonhar e realizar, tem prêmio mais elevado do que o reconhecimento de sua história? Viva o Conselheiro.
A história contada por quem se declara vencedor geralmente apresenta uma única versão dos fatos que é aquela que lhes interessam. Tive tios avós que sobreviveram a este conflito, e tinham marcas em seus próprios corpos.
E como o tempo corrige as distorções causadas pela arrogacia, poder e dinheiro, quem triunfa, a posteriori, nesta história e Antonio Mendes Maciel. E para um homem enquanto ser dotado de capacidade de sonhar e realizar, tem prêmio mais elevado do que o reconhecimento de sua história? Viva o Conselheiro.
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