sexta-feira, 17 de abril de 2015

REMEMORANDO A SECA DE 1915

Por José Gonçalves 


Cândido Portinari: Os retirantes

Há cem anos tinha lugar a seca de 15, tida como uma das piores estiagens da história do nordeste, particularmente do Ceará, onde o fenômeno se projetou com maior intensidade, assumindo proporções assaz aterradoras.

A seca de 1915, que inspiraria obras de vulto, como o romance “O Quinze”, da cearense Raquel de Queiroz, eclodiu no momento em que o nordeste ainda tentava se recuperar dos danos provocados pelas terríveis secas de 1877/79 e 1900, quando aproximadamente metade da população nordestina ou morrera de fome ou migrara para outras regiões do país, em especial para Amazônia, de onde nunca mais haveria de voltar.

Sem qualquer ação governamental que oferecesse condições infraestruturais de combate aos efeitos catastróficos das estiagens prolongadas, como ocorre ainda hoje, transcorrido já um século, a seca de 15 devastou grande parte do nordeste brasileiro, afetando drasticamente a economia regional e levando à morte milhares de seres humanos, entre homens, mulheres e crianças.

Na falta dos recursos mais elementares, as pessoas ingeriam o que estivesse ao seu alcance, como raízes, brós, beldroegas, mucunãs, insetos, ervas daninhas, e até mesmo animais infectados. Diante da necessidade extrema, valia a lei da sobrevivência, não importando ao faminto a qualidade do que era consumido.

Doenças relacionadas a esse tipo de calamidade logo começaram a se alastrar pela região, matando, sem piedade, principalmente velhos, crianças e pessoas debilitadas. Dentre tais moléstias, avultavam a varíola, o sarampo e a disenteria, além de uma série de outras enfermidades provocadas pela ingestão de água e alimento de péssima qualidade, como a enterite e a gastrenterite.

O escritor e humanista Rodolfo Teófilo, velho conhecedor do drama nordestino, assim descrevia os horrores da seca: “uma desgraçada mãe, só ossos e pelancas, morta no meio da estrada, no seio uma criancinha esquelética procurando sugar algumas gotas de leite do cadáver; um retirante animalizado, metido numa gruta, alimentando-se da carniça humana que encontrava nos caminhos; uma criança encontrada numa casa abandonada à beira do caminho, fechada na camarinha, caída de fome e chupada de morcegos, que lhe cobriam o corpo como um lençol negro; um desgraçado retirante estirado na estrada, no marasmo da fome, sem forças para mover um músculo, cercado de urubus vorazes e famintos, que não esperam a morte da vítima, mas a apressam, vazando-lhe os olhos com o bico adunco...”.

Ao invés de adotar iniciativas que atendessem o sertanejo no seu torrão de origem, evitando seu deslocamento para outras paragens, o governo, no caso específico do Ceará, optou por encerrar os flagelados em um “campo de concentração”, nos arredores de Fortaleza, onde mais facilmente poderia distribuir suas migalhas. Encurralados e reduzidos à condição de animais, aqueles homens e mulheres tornavam-se cada vez mais vulneráveis, perecendo aos centos, aos milhares, em consequência das inúmeras enfermidades, que por lá grassavam a todo instante.

Era nessas circunstâncias que, a cada dia, levas inteiras de retirantes cruzavam o nordeste brasileiro, na busca ilusória de melhores condições. Em  “O Quinze”, Raquel de Queiroz põe em cena a saga de Chico Bento que, após abandonar terra e criatório no interior do Ceará, parte com a família em direção ao litoral, na esperança de dias melhores.

Ao longo da árdua e tormentosa jornada, dita família de migrantes experimentará todos os rigores da estiagem, a ponto de presenciar a morte, em virtude da fome, do primogênito Josias. Cada vez mais mergulhados na trágica e brutal realidade da seca, e desfeitas as esperanças de uma vida melhor, distante das agruras vivenciadas no torrão de origem, também eles acabam esbarrando no famigerado “campo de concentração”, que se converteria mais tarde em “campo santo”, na palavra balizada de Rodolfo Teófilo.

Passado um século, desde aquele doloroso flagelo que se abateu sobre o nordeste do Brasil, pouquíssima coisa se fez no sentindo de combater ou, pelo menos, minimizar os efeitos nocivos da seca (visto ser esta condição intrínseca à conformação climática do nordeste e, portanto, inevitável).

Depois de 15, o nordeste voltaria a experimentar outros longos e severos períodos de seca, como os que se registraram nos anos trinta, setenta e oitenta do século passado. Os governos, no entanto, mantiveram-se indiferentes, pouco fazendo para enfrentar a questão. Neste momento em que áreas inteiras (tanto do nordeste como do sudeste) estão sendo afetadas pela falta de água e seus efeitos deletérios, quase nada vem sendo feito para solucionar o problema. Em lugar de investir em modelos inovadores de convívio com a escassez de chuvas, utilizando o próprio potencial do nordeste, o poder público teima em manter os velhos e superados expedientes, que, de há muito, contribuem para o atraso do nordeste.

Ocorre que as secas representam um negócio altamente lucrativo, havendo quem delas obtenha vantagens e privilégios. A cesta básica e o carro-pipa, irmãos siameses das estiagens, são usados sistematicamente para fins eleitoreiros, alimentando a dependência econômica e alargando o círculo vicioso da miséria. É a chamada “indústria da seca” que vive e se abastece à custa da dor e do sofrimento das pessoas menos aquinhoadas.
Urge – nunca é demais repetir – que se adotem medidas, não de combate à seca, como se propôs por longo tempo, e sim de convivência com a mesma.  Para tanto, é necessário que se construam políticas públicas capazes de prevenir os efeitos maléficos das estiagens e ao mesmo tempo preparar o sertanejo para a vida no semiárido.

José Gonçalves do Nascimento
Poeta e cronista

jotagoncalves_66yahoo.com.br

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