Por José Gonçalves
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Cândido Portinari: Os retirantes |
Há cem anos tinha lugar a
seca de 15, tida como uma das piores estiagens da história do nordeste,
particularmente do Ceará, onde o fenômeno se projetou com maior intensidade,
assumindo proporções assaz aterradoras.
A seca de 1915, que
inspiraria obras de vulto, como o romance “O Quinze”, da cearense Raquel de
Queiroz, eclodiu no momento em que o nordeste ainda tentava se recuperar dos
danos provocados pelas terríveis secas de 1877/79 e 1900, quando
aproximadamente metade da população nordestina ou morrera de fome ou migrara
para outras regiões do país, em especial para Amazônia, de onde nunca mais
haveria de voltar.
Sem qualquer ação
governamental que oferecesse condições infraestruturais de combate aos efeitos
catastróficos das estiagens prolongadas, como ocorre ainda hoje, transcorrido
já um século, a seca de 15 devastou grande parte do nordeste brasileiro, afetando
drasticamente a economia regional e levando à morte milhares de seres humanos,
entre homens, mulheres e crianças.
Na falta dos recursos mais
elementares, as pessoas ingeriam o que estivesse ao seu alcance, como raízes,
brós, beldroegas, mucunãs, insetos, ervas daninhas, e até mesmo animais infectados.
Diante da necessidade extrema, valia a lei da sobrevivência, não importando ao
faminto a qualidade do que era consumido.
Doenças relacionadas a esse
tipo de calamidade logo começaram a se alastrar pela região, matando, sem
piedade, principalmente velhos, crianças e pessoas debilitadas. Dentre tais
moléstias, avultavam a varíola, o sarampo e a disenteria, além de uma série de
outras enfermidades provocadas pela ingestão de água e alimento de péssima
qualidade, como a enterite e a gastrenterite.
O escritor e humanista
Rodolfo Teófilo, velho conhecedor do drama nordestino, assim descrevia os
horrores da seca: “uma desgraçada mãe, só ossos e pelancas, morta no meio da
estrada, no seio uma criancinha esquelética procurando sugar algumas gotas de
leite do cadáver; um retirante animalizado, metido numa gruta, alimentando-se da
carniça humana que encontrava nos caminhos; uma criança encontrada numa casa
abandonada à beira do caminho, fechada na camarinha, caída de fome e chupada de
morcegos, que lhe cobriam o corpo como um lençol negro; um desgraçado retirante
estirado na estrada, no marasmo da fome, sem forças para mover um músculo,
cercado de urubus vorazes e famintos, que não esperam a morte da vítima, mas a
apressam, vazando-lhe os olhos com o bico adunco...”.
Ao invés de adotar iniciativas
que atendessem o sertanejo no seu torrão de origem, evitando seu deslocamento
para outras paragens, o governo, no caso específico do Ceará, optou por
encerrar os flagelados em um “campo de concentração”, nos arredores de
Fortaleza, onde mais facilmente poderia distribuir suas migalhas. Encurralados
e reduzidos à condição de animais, aqueles homens e mulheres tornavam-se cada
vez mais vulneráveis, perecendo aos centos, aos milhares, em consequência das
inúmeras enfermidades, que por lá grassavam a todo instante.
Era nessas circunstâncias
que, a cada dia, levas inteiras de retirantes cruzavam o nordeste brasileiro,
na busca ilusória de melhores condições. Em “O Quinze”, Raquel de Queiroz põe em cena a
saga de Chico Bento que, após abandonar terra e criatório no interior do Ceará,
parte com a família em direção ao litoral, na esperança de dias melhores.
Ao longo da árdua e
tormentosa jornada, dita família de migrantes experimentará todos os rigores da
estiagem, a ponto de presenciar a morte, em virtude da fome, do primogênito
Josias. Cada vez mais mergulhados na trágica e brutal realidade da seca, e
desfeitas as esperanças de uma vida melhor, distante das agruras vivenciadas no
torrão de origem, também eles acabam esbarrando no famigerado “campo de
concentração”, que se converteria mais tarde em “campo santo”, na palavra
balizada de Rodolfo Teófilo.
Passado um século, desde
aquele doloroso flagelo que se abateu sobre o nordeste do Brasil, pouquíssima
coisa se fez no sentindo de combater ou, pelo menos, minimizar os efeitos
nocivos da seca (visto ser esta condição intrínseca à conformação climática do
nordeste e, portanto, inevitável).
Depois de 15, o nordeste
voltaria a experimentar outros longos e severos períodos de seca, como os que
se registraram nos anos trinta, setenta e oitenta do século passado. Os
governos, no entanto, mantiveram-se indiferentes, pouco fazendo para enfrentar
a questão. Neste momento em que áreas inteiras (tanto do nordeste como do
sudeste) estão sendo afetadas pela falta de água e seus efeitos deletérios,
quase nada vem sendo feito para solucionar o problema. Em lugar de investir em
modelos inovadores de convívio com a escassez de chuvas, utilizando o próprio
potencial do nordeste, o poder público teima em manter os velhos e superados
expedientes, que, de há muito, contribuem para o atraso do nordeste.
Ocorre que as secas
representam um negócio altamente lucrativo, havendo quem delas obtenha
vantagens e privilégios. A cesta básica e o carro-pipa, irmãos siameses das
estiagens, são usados sistematicamente para fins eleitoreiros, alimentando a
dependência econômica e alargando o círculo vicioso da miséria. É a chamada
“indústria da seca” que vive e se abastece à custa da dor e do sofrimento das
pessoas menos aquinhoadas.
Urge – nunca é demais
repetir – que se adotem medidas, não de combate à seca, como se propôs por
longo tempo, e sim de convivência com a mesma.
Para tanto, é necessário que se construam políticas públicas capazes de
prevenir os efeitos maléficos das estiagens e ao mesmo tempo preparar o
sertanejo para a vida no semiárido.
José Gonçalves do Nascimento
Poeta e cronista
jotagoncalves_66yahoo.com.br