Por José Gonçalves
Nos anos oitenta do século passado, foram dados importantes passos com vistas à formação de uma mentalidade que, efetivamente, se ativesse ao resgate da memória sertaneja, especialmente aquela relacionada ao episódio de Canudos. O contexto do momento era o das lutas sociais, destacando-se as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a luta pela terra, a reconquista de sindicatos livres e a redemocratização política do país.
Uma das primeiras iniciativas nesse sentido foi a Missa pelos mártires de Canudos, realizada em 28 de julho de 1984, sob a coordenação do padre Enoque José de Oliveira, então vigário da paróquia de Monte Santo e com o apoio das dioceses baianas de Bonfim, Juazeiro, Paulo Afonso e Rui Barbosa.
Contando com ampla programação, que incluía desde shows musicais, recitais de poesias, peças de teatro, até a celebração da eucaristia, a Missa pelos mártires de Canudos teve lugar nas margens do açude Cocorobó, em sábado de sol escaldante, e contou com a participação de milhares de pessoas, procedentes de todas as partes do sertão baiano e até mesmo de outros estados do nordeste.
A liturgia eucarística foi presidida por Dom José Rodrigues, então bispo da diocese de Juazeiro e concelebrada por mais oito sacerdotes, provenientes das quatro dioceses presentes na solenidade.
Na homilia, proferida da tosca carroceria de um caminhão, o prelado destacou a importância do evento e exaltou a história da comunidade canudense: “estamos celebrando a história de Canudos que é a história do povo nordestino: história de dominação política, de exploração, de seca, de miséria, de doença, de analfabetismo, de atraso. O grande sonho que Antônio Conselheiro sonhou nestas paragens foi de criar uma sociedade igualitária, em que todos fossem iguais, na teoria e na prática. Aqui em Canudos, Antônio Conselheiro ensaiou um novo estilo de organizar a sociedade.”
Naquele mesmo período, teve lugar o Movimento histórico de Canudos, que, capitaneado pelo já referido padre Enoque, congregava representações dos mais variados setores da sociedade, como partidos políticos, igrejas, sindicatos, universidades, órgãos de imprensa, etc.
Com um leque de cobertura que ia de norte a sul do país, o movimento reunia uma considerável gama de intelectuais, artistas, poetas, lavradores, além de muitas centenas de simpatizantes. Todos eles embalados pela missão sacrossanta de resgatar a memória de Canudos e devolver ao sertão o verdadeiro sentido do movimento fundado por Antônio Conselheiro.
Dentre as propostas então apresentadas pelo Movimento histórico de Canudos, há que se destacar: 1) registro do dia 5 de outubro no calendário oficial do Brasil; 2) desmistificação da visão falsa que foi ensinada ao povo sobre Antônio Conselheiro e Canudos; 3) defesa da área da guerra, como zona livre à visitação coletiva de estudiosos e romeiros; 4) garantia aos trabalhadores do direito à exploração e proteção do criatório, da pesca, da fauna e da agricultura em toda a área do açude.
A partir de então, além do movimento social, vários outros segmentos da sociedade brasileira, em especial no nordeste, passaram a incorporar o tema Canudos às suas agendas e atividades. São da época, por exemplo, a construção do Parque estadual de Canudos, por parte do Governo do Estado; a criação do Memorial de Canudos, na cidade do mesmo nome – também obra do governo estadual; e o Instituto popular memorial de Canudos – IPMC, vinculado à igreja católica. Setores outros, como escolas, universidades, grupos artísticos, etc., também tomariam parte na questão.
A segunda Missa, em 1985, ocorreu no dia 5 de outubro, data do término da guerra e teve como foco o tema da reforma agrária. O evento manteria seu formato original até 1987, quando se deu o afastamento do padre Enoque da paróquia de Monte Santo e o consequente esfacelamento do grupo.
Nascida no seio do movimento popular, a Missa pelos mártires de Canudos é um marco da luta pela revitalização da memória sertaneja. 30 anos depois, seu legado permanece atual, sendo uma das principais referências para todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuem com o significativo processo de resgate e valorização da experiência comunitária de Canudos.
José Gonçalves do Nascimento
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